«Eu te condecoro quando merecias o conselho de guerra»  Major Ferreira do Amaral

Porque é sempre escrita por vencedores, a História é constelada de vitórias, de avanços gloriosos e de feitos de armas notáveis. Para o Corpo Expedicionário Português (C.E.P), é no caos da derrota e na desobediência que o herói se encarna.

A história tem uma origem banal. Um homem pequeno (1,55m), de cerca de 20 anos, embarca como tantos outros com destino a um país que ele não conhece, e para uma acção da qual tem apenas uma vaga ideia: fazer a guerra. É verdade que o «milagre Português» foi considerável. Em alguns meses, o centro de formação militar de Tancos fez emergir uma, depois, duas divisões com o objectivo de constituir um corpo armado.

                Aníbal Augusto Milhais Gote nasceu no dia 9 de Julho de 1895 em Valongo, perto do Porto. Trabalhador sem instrução, é recrutado a 30 de Julho de 1915 e integra a infantaria do C.E.P em 1917. Serve sob as ordens do Comandante Ferreira do Amaral enquanto simples soldado. Muito rapidamente, o simples soldado revela-se um excelente atirador de elite.  

Em Abril de 1918, encontra-se nas trincheiras do sector da Ferme du Bois em La Couture. Seguindo o movimento das tropas, acaba por chegar a Huit Maisons (território de La Couture) no dia em que se inicia a batalha de la Lys. Naquela segunda-feira de Páscoa, vésperas do revezamento das tropas, o inimigo ataca de madrugada e no nevoeiro, bombardeando sem tréguas, cortando os pontos de comunicação e avançando com o objectivo de deixar para trás o menor número possível de feridos.

Por volta das 10h, a aliança aproxima-se do sector de Huit Maisons. Este reduto é comandado pelo Major britânico Furse, que lidera os Seafords Highlanders e os King’s Edwards. As tropas portuguesas do 15º batalhão do Tenente Fontesy estão também presentes. Face a eles, as forças da aliança mantêm-se imóveis e aguardam reforços.

Pelas 12h20, após quatro horas de resistência, os sobreviventes da 2ª companhia do 14º batalhão juntam-se a eles pela estrada de Pont du Hem, seguidos pelos alemães. As vagas ofensivas sucedem-se mas Huit Maison resiste.

Pelas 14h, o inimigo começa a contornar a posição de modo a cercar este ponto fortificado. O Major Furnes dá a ordem de evacuar. Todos obedecem, com excepção de Aníbal que lança pela primeira vez esta frase que se tornará célebre «vão-se embora, eu protejo a vossa retirada». O jovem Milhais, opondo-se às ordens, corre o risco de ser levado a tribunal militar, mas recusa-se a abandonar a posição. Armado com a sua metralhadora Lewis, cobre a retirada das tropas.

Começa então uma série de actos heróicos dignos de uma lenda. Ele protege antes de mais a retirada, metralhando ininterruptamente, ao ponto de bloquear o caminho aos alemães. A sua perícia permite-lhe disparar a uma distância de cerca de 200 metros. Além disso, a sua pequena altura permite-lhe saltar de trincheira em trincheira e de se movimentar furtivamente. Para recarregar a sua metralhadora, utiliza os cartuchos dos soldados mortos. Um tal controlo leva os alemães a pensar que o sector é mantido por um batalhão. Quando o sector é tomado de assalto, Aníbal já partiu; aproveitou uma tela de tenda e a carcaça de um cavalo morto para se esconder e deixar passar os atacantes. Nos dias que seguem, vagueia perdido mas continua a leva a cabo ataques esporádicos assim que se apresenta uma ocasião propícia. No dia 13 de Abril, decide organizar a evasão de uma coluna de Highlanders com que se cruzara e que estavam escoltados por alemães. Metralha estes últimos sem dar tréguas e, acompanhando os escoceses libertados, regressa às suas linhas. É então no decurso de uma passagem a nado, que salva um major escocês de afogamento. O pequeno homem discreto torna-se assim numa lenda.        

De seguida, Aníbal Milhais prossegue com a sua obra em Ypres e cobre a retirada de uma coluna de belgas e franceses.

Passando ainda em vida à posteridade, era impossível submeter um soldado destes a um tribunal militar por ter desobedecido e realizado tantos actos de bravura. O Praça Milhais recebe directamente no campo de batalha e perante 15 000 soldados, a Cruz de Guerra Belga, a “Victoria Cross” e o Colar da Torre e Espada. Para além destas condecorações, receberá um novo nome: «Chamas-te Milhais, mas vales milhões».

Após o armistício e tornando-se numa lenda viva, Milhais regressa a Portugal a 2 de Fevereiro de 1919. Aí casa-se com Maria de Jesus e passa a ajudá-la na educação dos 9 filhos que tiveram.

Em homenagem ao herói, a sua aldeia natal será renomeada Valongo de Milhais no dia 8 de Julho de 1924. Mas a vida no campo em Portugal não é fácil nos anos 20. Para fazer face à crise, Milhais emigra para o Brasil em 1928. Assim que se apercebe da sua partida, a aldeia organiza um grande peditório para o regresso do seu herói. O dinheiro permitir-lhe-á viver com um pouco mais de dignidade. Quando regressa a Portugal, a 5 de Agosto de 1928, o Estado português atribui-lhe uma pensão.  

O soldado mais condecorado de toda a história do exército português falece no dia 3 de Junho de 1970 na aldeia que tem o seu nome.

Fontes
L’histoire du soldat Milhoes par Anibal Milhais : https://www.bing.com/videos/search?q=o+soldado+milhoes&&view=detail&mid=62647026CC11C4C7EA3E62647026CC11C4C7EA3E&FORM=VRDGAR
Francis CARPENTIER : Loisne et Lawe, le village de La Couture dans la Grande Guerre, Ed La Couture, Champs de Cultures, 2013
Manuel de NASCIMENTO, Première Guerre mondiale (centenaire 1914-2014), Ed L’Harmattan, Paris 2014
Phil TOMASELLI : The Battle of the Lys 1918, Ed Pen & Sword Military, Barnsley 2011